A arte de segregar

Segrego. Logo, existo. Ignoro, transformo em sucata. O que não é igual, o que não é perfeito. E já que cada um tem uma noção muito particular do que seja “perfeito”, fica decretado que nada é. Só que a perfeição, se é que ela existe, não é uma grandeza absoluta. Um patamar de excelência a ser alcançado por todos. Não. Você só é perfeito se for perfeitamente. .. você!

Segrego, trituro lembranças e sentimentos, invento rótulos como se meu ato de segregar fosse uma produção de bens a serem consumidos. Cada um deles com seu marketing específico. Segrego por que é gay, e eu não sou. Segrego por que não é gay, e eu sou. Por que torce para o time A, e eu para o B. Por que torce para o time B e eu para o A. Por que odeia futebol...

Por que é velho e eu não. Por que é jovem, e eu não. Por que é funcionário público, e eu não. Por que não é funcionário público, e eu sou. Por que tem dinheiro e eu não. Por que não tem dinheiro, e eu tenho. Por que um dia disse algo... Por que um dia deixou de dizer algo...

Por que é negro, branco, religioso, ateu, calado, falante, brilhante, apagado, mora longe, mora ao meu lado, fuma, não fuma, gosta de musica clássica, não gosta de musica clássica. Por que não faz idéia de quem foi Piaff ou Callas. Por que sabe demais sobre Piaff ou Callas. Segrego a diferença. Não me interesso por aquilo que não for EU.

Segrego por que não quero conhecer. Segrego por que não me serve mais. Segrego por que descarto afetos. Descarto afetos usados. Despejo, como que em um enorme esgoto espiritual.

Se as religiões, as leis, os sábios, os militantes.. . praticassem o que pregam. Teríamos mais tolerância e união. Se os heróis praticassem o que pregam, teríamos menos Fidel e mais Che...

Ao contrário, reverenciamos a tudo que nos separa. Prostramo-nos em adoração aos dogmas que nos façam parecer diferentes. Opostos. Apóstatas. Oponentes imaginários em uma batalha que não começou, e mesmo assim não vai terminar nunca. Teorizamos com precisa e detalhada erudição sobre a certeza de nossa incompatibilidade. . Depois a celebramos em liturgias silenciosas, particulares, perversas, desprovidas da humanidade que tanto reclamamos faltar no mundo. E nesse processo, apenas ficamos... mais sós.

Enquanto em algum lugar, alguém chora lágrimas invisíveis de saudades. E lembra do quase toque. E morre à míngua, por que a humanidade.. . a humanidade em nós está ocupada. Não há toque.








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